O RINCÃO DOS ESQUECIDOS, de André Moab Garcia

XV – AS GAUCHADAS E O CAMBICHO DA ESTÂNCIA TARUMÃS
O RINCÃO DOS ESQUECIDOS
de André Moab Garcia

O Sabiá mal tinha voltado e já tinha data marcada para deixar a estância de novo. E dessa vez o negócio parecia ser um pouco mais sério, já que a noiva se recusava a morar na estância; e tanto os pais como os sogros faziam coro com ela. A pressão maior vinha do futuro sogro, pois a guria era muito agarrada ao velho; e o pai não queria a filha morando longe. Por conta disso, o velho ofereceu de tudo para que o Sabiá fosse morar na vila.

O Passarinho sempre sonhou em ser cantor. E o seu Alírio combinou com o pai da noiva que esse talvez fosse o único meio de manter o Sabiá na vivência povoeira. Os pais dela aceitaram a idéia de pronto. É claro que ninguém vive de cantoria e, por isso, teriam de abrir um comércio que os sustentasse durante a maior parte do tempo. Assim, quando o Sabiá fosse, por acaso, cantar nalgum rincão distante, os velhos teriam a companhia da filha. Melhor isso do que ver a filha morando numa estância e vindo de visita uma vez por mês.

Antes do fim do outono, num sábado pela manhã, o Sabiá cruzou pela última vez a porteira da Tapera; e para lá não voltaria, pelo menos não como solteiro.
E se há, por acaso, alguém que tenha se indagado, eu, ligeirito, lhes respondo: mas é claro que eu fui com ele! Não para fazer querência no povo, mas pela alegria de poder viver junto com o meu amigo o que restava de tempo, antes que o inverno me fizesse prisioneiro da estância, e a ele prisioneiro da mulher. Além do mais, tinha baile na Estância Tarumãs. E isso era coisa de ano em ano! Mas peão nenhum, que tivesse um pouco de amor pela vida, perderia a festa.

Começavam as gauchadas na manhã de sábado, com as lidas de mangueira; apartes e castrações, tiros de laço e pialos a la farra, tudo bem ao gosto da peonada. Por volta do meio dia um churrasco à moda campeira, assado pelo velho Francisco Saraiva, um fronteiriço respeitado nesse ofício e que vinha, especialmente, por essa razão. Churrasco esse regado a canha da boa ou vinho comprado da Colônia Nova, bebida que sempre agradava, especialmente quando se ouvia a voz rouca de um cantador missioneiro acompanhando a guitarra campeira, amadrinhado pelo bandônio de um uruguaio de nome Domingos Hernandez.

A fazenda era propriedade de um engenheiro chamado Rubens de Souza Aragonez, filho de família mui antiga nos dois lados da fronteira; e que por força da profissão acabou fixando as raízes no Rio de Janeiro. Era costume do Dr. Rubens passar os meses de verão e outono na estância, voltando para o Rio de Janeiro logo após o baile de despedida, já famoso na região, e que se repetia há quinze anos. Alguns diziam que era a despedida dos dias de tempo bom, enquanto outros diziam que era o baile de inauguração do inverno, o que não importava em nada, desde que não se deixasse de ir.

Eu montava uma égua rosilha, domada há muitos anos pelo próprio João Vieira; e que apesar do tempo de encilha continuava faceira e avivada, como se estivesse sempre pronta a se desdomar. Embora de aparência arisca era flor de animal. Dentre toda a cavalhada da estância era a de minha preferência, quando o assunto fosse não fazer feio na frente dos outros. O Sabiá vinha na carroça, trazendo umas encomendas para a mãe, que esperava por ele na vila, e de quebra tudo o que fosse preciso para que a gente não se apertasse durante o fim de semana. De quase tudo se achava na carroça velha: carne pra churrasco, charque pra um arroz-de-carreteiro, muda de roupa para se usar no baile, avios de mate, vinho à la farta. E, só para equilibrar a coisa, acolheramos uma cachaça com carquejinha branca, pra acompanhar o mate antes e depois do almoço.

Conhecedor daquelas paragens o capataz nos orientou a fazer acampamento num bosque de angicos, que ficava num cerro um pouco mais distante das casas da estância. Conforme ele preveniu o lugar podia ser meio afastado, mas era muito procurado pelas famílias que iam ao baile e exigiam respeito no trato, preferindo, por isso, um lugar que não fosse perto de ajuntamentos. Mais próximos das casas ficavam dois grandes bosques de eucalipto, que atraiam todo tipo de gente. Além disso tinham as canchas de osso, que sempre resultavam em alguma algazarra; sem falar nas cantorias e borracheiras, que não deixavam ninguém dormir. Aliás, que isso nunca foi problema para nós, que sempre deixamos esse serviço por conta do vinho. O capataz tinha recomendado o pouso nos angicos, também por outra razão, pois foi lá que ele tratou esperar a resposta de um tal Juan José Guarany; ou Índio Guarany, que era o modo como ele era conhecido por todos. Conforme explicou o João Vieira, o Guarany era mesmo índio. E embora tivesse por nome Guarany, na verdade era de sangue charrua cruzado com índio paraguaio, o que resultou numa cria que ninguém sabia dizer ao certo o que era. Conheciam-se desde os tempos de guerra. E sempre que a ocasião calhava, era com alegria que o índio passava uma temporada estanciando na Tapera.

Achei o causo esquisito, pois que durante meus anos de estância não me lembrava de ter visto por lá ninguém com esse nome; pelo menos não que eu lembrasse. O João Vieira me explicou que ele não aparecia, mesmo, por lá, já há muito tempo. E que a última vez em que estiveram juntos foi no dia em que o capataz conheceu o Leite-de-onça, no bolicho do Dom Fernando.

O caso é que o Índio Guarany era famoso como domador de cavalos. E, segundo o capataz, não era para menos, já que os de sangue charrua aprendiam desde pequenos a conversar com os bichos, conforme se dizia na época. E eu não só não duvidei disso como tive provas.

Acontece que naquele tempo as estâncias eram muito grandes, e, volta e meia, um redomão tornava-se aporreado, formando-se, com pouco tempo, uma tropilha de desdomados. Vai daí que, quando o lote de aporreados chegava a uma determinada quantidade, chamavam o Guarany para botar ordem na cavalhada. E era desse jeito que o índio ganhava a vida, desaporreando redomão, coisa que ninguém conseguia fazer; e recebia como pagamento um determinado lote de desgarrados, variando conforme o tamanho da tropa a se socar o freio. Esse tipo de serviço exigia tempo. E como não faltasse o que fazer, o índio Guarany andou sumido por um bom tempo. Mas, sempre que era possível mandava um chasque para o amigo da Tapera.

De acordo com o João Vieira, o índio era capaz de pegar um bagual, que babava de brabo só de ver um freio, e deixar o bicho manso de boca de fazer trotear pra trás de tão faceiro. Isso sem nunca judiar de um animal, porque segundo ele um matungo só se torna aporreado porque sofreu alguma judiaria; e que, sendo assim, não é judiando mais que se vai trazer o animal de volta. Eu era da mesma teoria que ele nesses assuntos, porque sempre achei que mango não foi feito pra lombo de cavalo, mas sim pra lombo de animal aporreado feito o Mão-pelada, meu velho inimigo, e que Deus o conservasse sempre mal. Assim rezava eu naqueles dias.

No início a gente se estranhou um pouco. Jeitoso, como sou, no trato com gente braba, não podia ser diferente. E o causo se deu mais ou menos assim: chegando na Estância Tarumãs, não foi difícil encontrar um bom lugar, já que a gauchada preferia, mesmo, os lugares mais perto das casas, que era onde todo mundo se encontrava e se irmanava. Mas, se o Cerro dos Angicos nos deixava afastados da vivência campeira, por outro lado tinha lá suas vantagens, já que bem abaixo, no sentido contrário ao das casas, passava uma sanga estreita, de águas claras, e que era um achado naquele Veranico de Maio, que se apresentava quente além do normal. Recomendou, ainda, o capataz, que se o cansaço não fosse muito – “se a preguiça deixar”, disse ele – era só caminhar um pouco sanga acima, que logo se topava com uma queda d’água de metro e meio de altura, que era especial para se banhar ou curar borracheira. Ficava a uns cem metros de distância; e, seguindo as orientações do capataz, achamos o lugar sem dificuldade. Mais uma vez me vi obrigado a dizer uma prece, na intenção do João Vieira; o remanso era pequeno, mas nem na Tapera se achava um banho como aquele.

De volta ao local do acampamento vimos que uma família tinha se aquerenciado perto do lugar onde deixamos os cavalos à soga, um pouco mais para o centro do bosque, onde o pasto tinha crescido com mais força.
_ Bueno, Passarinho! Vamos tratar do fogo, que depois se busca os matungos mais para perto. Afinal, os bichos já estavam lá quando eles chegaram.

De soslaio firmei a mirada no rumo dos novos vizinhos. E percebi que eles também estavam mais preocupados em fazer fogo do que com nossos cavalos, que pastavam por perto. Fiz fogo e acomodei as cambonas, enquanto o Sabiá fazia um espeto de galho de angico, na intenção de acomodar uma paleta dum capão gordo; aliás, que escolhida com carinho para a ocasião. Carne no espeto, mate cevado e guampa de canha no costado. Sorvi o primeiro amargo, com prazer. E, depois, mais dois, pra lavar o veneno do mate, antes de servir o primeiro para o meu companheiro.

Saquei a rolha da guampa e virei, queixo adentro, um trago largo, numa espécie de prece campeira, para que desse tudo certo nos dias vindouros; em especial, no baile do dia seguinte, já que a saudade de algum cambicho me roia o peito, causando inquietação.

Não é a toa que a carqueja é tida como um santo remédio. Isso vem de muito tempo. E não é por outra que se prepara canha com ela. Seja da branca ou de touceira, o importante é que sendo carqueja e estando o vivente mal das frissuras, bastam algumas doses e já logo o cristão se endireita. É claro que tem um ou outro sem muito conhecimento da medicina campeira, que teima porque teima que o que faz o vivente levantar o estado é o chá. Mas, não sou eu quem vai contrariar a sabedoria de tantos gaúchos guapos, gaudérios, pampeanos e chimarrões, que afirmam que o bom mesmo é a erva conservada em álcool de aguardente, seja carqueja, guaco, losna ou outra qualquer!

Levando em conta a importância de todo esse conhecimento adquirido, quando alguma coisa me roncou no baixo da barriga, depois daquele primeiro gole, achei por bem tomar outro em seguida, como forma de não deixar dúvida. Isto feito, peguei o Sabiá, desprevenido, enrolando um cigarro, quando passei bem ligeirito, dizendo pra ele:

_ Chê! te vira com as coisas, que eu já tô me cagando!
E do jeito que vinha, sem nem esperar resposta, saí desatinado, desafivelando a guaiaca da cintura, enquanto buscava com os olhos uma árvore de tronco grosso, onde eu pudesse caber de atrás sem ser visto. Mas deixa que eu mal me acomodava, já me esvaindo num churrio abarbarado, de fazer suar gelado, me torcendo de cólica, quando percebi que alguém se achegava pelo outro lado do tronco. “Deixa, que eu já te cuido”, pensei. Na certa que se tratava de algum desordeiro, desses que ficam felizes em desatinar um cristão em situação desfavorável. Mas se a situação já fedia, ao natural, certamente que iria piorar, porque quando eu saio posso esquecer até do meu nome, mas nunca me esqueço do mango de amansar Mão-pelada, que sempre trago preso à cinta, pendurado ao longo da perna esquerda. Por isso, mal o desalmado se aquietou, e assim que a cólica permitiu, saquei do mango e, sem nem mudar de posição – porque quanto mais a gente se mexe mais se suja -, larguei lhe o braço, golpeando quem estivesse por trás da árvore, de modo que deu pra escutar um estalo seguido de um “ui!”. Acontece que a coisa não ficou assim, no barato. E mal eu voltava para a minha posição, senti um estalo na orelha e uma queimação, que se seguiu a um outro “ui!”; só que dessa vez, de minha parte.

Lhes digo, senhores, que aquele que nunca levou um mangaço pela orelha nem imagina do que se trata, e o tanto que queima. Só para que tenham uma idéia de como é, imaginem alguém lhes enfiando uma brasa pela orelha e, depois, dando um tapa bem dado! Acontece que em situações muito contrárias o pensamento trabalha muito mais rápido do que o corpo é capaz de reagir. E eu cheguei a pensar que, talvez, tivesse calculado mal o golpe e o tamanho do tronco, e tivesse acertado a minha própria orelha pelo lado contrário! Vai daí que a situação era séria e merecia uma resposta rápida, pois eu não iria levar pra casa um mangaço pela orelha. E, por conta disso, nem me importei com a imundícia em que estava. Saltei de pé, com as calças pelo tornozelo, já imaginando que a peleia ia ser dura. Pois não vê que o destino se diverte com a dificuldade do pobre. E pra completar o quadro, me vi como que diante a um espelho. Não é que à minha frente tinha saltado, ao mesmo tempo e com a mesma intenção, aquele que eu pensava estar ali só pra atazanar. E não é que o infeliz estava na mesma situação que eu!

Parados, um de frente para o outro, e com os olhos mui arregalados – sem falar nas orelhas vermelhas, em brasa -, estaqueamos, de mango na mão, prontos para qualquer coisa. Calças pelos tornozelos e um fedor insuportável empestando o ar, ficamos por um tempo tomando tino do que tinha se passado. Nem foi preciso que se trocasse uma palavra, para compreender o mal entendido. E, assim, como se fosse uma dança daquelas bem ensaiadas, voltamos cada um pra o seu lugar, bem depressinha, que churrio é caprichoso e não quer saber em que pé anda a vida do vivente. Terminado o sofrimento saímos, ao mesmo tempo, em direções opostas, um cuidando o outro com o canto dos olhos, até que nos perdemos de vista.

Depois da quinta viajem, e já quase sem tronco onde eu pudesse me esconder, o triperio se acalmou e me deixou quieto, depois de mais um banho. De volta para o nosso lugar de pouso, me quedei junto ao Sabiá.
_ Mas o que foi que te deu, tchê? – perguntou ele, mal disfarçando uma risada.

_ Sei lá! – respondi, sem graça. Alguma coisa não andava direita nas tripas. Mas agora já tô melhor.
_ Tchê! E essa orelha vermelha, feito um tição de brasa?
_ Bobagem, tchê! Bati num galho de árvore… Só se eu fosse louco ou andasse borracho, pra contar a ele o que aconteceu.

Terminado o almoço, uma sesteada preguiçosa e sem pressa foi suficiente para que eu e meu companheiro achássemos que era hora de deixar o ninho e procurar o que fazer. No auge da minha vida de moço, andava sentindo, por demais, a falta de um casamento que tinha terminado sem ter tido um fim; assim como de um namoro, que terminou quando ainda nem tinha começado. As presenças de Juliana e Helena andavam me roendo o peito. Principalmente a de Juliana, pois Helena estava bem viva; e o destino sempre podia reservar alguma surpresa. Mas, com Juliana era diferente; não tinha mais volta, e ela só se mantinha viva em meu coração. Essa tristeza me deixava inquieto e disposto a encontrar uma chinoca sincera, que me oferecesse achego; mas sem outras pretensões para o futuro, porque eu sentia que não seria ali que eu encontraria alguém para alegrar o meu ranchinho.

Não demorou e passou um peão, envidando a gauchada para uma tertúlia crioula, num caramanchão junto ao galpão da estância. E se o caso era achar o que fazer, nem precisava mais procurar. Bem pilchados, descemos a cavalo no rumo da cantoria, que na verdade era como um ensaio campeiro para o baile da noite seguinte, só que com mais cantoria do que dança. Quase todos os que tinham ido para aquela festa se achavam pela volta, fosse cantando, declamando versos ou mesmo dançando, que a intenção daquilo era fazer com que todos se conhecessem e se irmanassem.

O sabiá, que se considerava cantor, achou, por certo, buscar lugar junto ao gaiteiro. Mas me prometeu que, de sã consciência, não iria se meter a cantar. Em todo o caso eu avisei que ficaria por perto, só para o caso de a consciência dele se tornar insana, fosse por conta de moça, borracheira ou as duas coisas ao mesmo tempo. Achei espaço ao lado de um gaúcho boa cepa, de nome Frederico Marchador, tropeiro e domador de potros, de quem eu nunca esqueci só pelo fato de ter tal sobrenome, porque depois dele nunca mais conheci ninguém da família Marchador.

_ Boas noites! – fui dizendo. _ O senhor me dá licença?
_ Se achegue, companheiro! Tome assento! É bom encontrar gente amiga – disse, com satisfação. _ Que tal andam as coisas na Tapera?
Não fazia ainda um ano desde que Frederico Marchador deixou a Tapera, levando consigo vinte e tantos baguais, em ponto de botar bridão. Aliás, que foi uma decisão acertada a do João Vieira, antes que ficassem como a manada de aporreados, cuja única esperança ficava à cargo do Índio Guarany. O homem ao meu lado era competente no ofício e, depois de amansar a bagualada, achou comércio pra os bichos, resultando um bom dinheiro para a Tapera e para ele, também, é claro. Frederico ficou alegre com a minha chegada, visto que durante o tempo em que estanciou na Tapera fui eu quem o ajudou no trato com a cavalhada; e mesmo que não levasse muito jeito para a doma, acabei aprendendo um monte de coisas com ele.

Além das lições da lida diária o Frederico tinha um outro lado. E era na hora do mate que ele mostrava seu talento de contador de causos, reunindo todos ao pé de um fogo de chão,.E entre um ou outro mate falava horas a fio, contando estórias, hora divertidas, hora tristes, mas que faziam com que o gaúcho se quedasse quieto, escutando com atenção, de modo que o índio se mijava mas não arredava o pé.

Frederico Marchador era casado com uma senhora, de nome Arolda, bondosa e de fala mansa, porém, de poucos sorrisos. De a cabresto para a festa na Tarumãs trouxeram a filha, uma moça na flor dos seus dezesseis anos; e sem graça, como manhã de segunda-feira. Magra, como uma vassoura, e com voz de papagaio, a qual, por mais que eu me esforce, não consigo lembrar o nome, e que era tratada sempre por Nina. Assim que eu me acheguei pra perto dele, dona Arolda pediu licença e saiu, na intenção de procurar por uma comadre que ainda não tinha conseguido encontrar, mas que tinha lhe mandado um recado avisando que faria pouso, também, no Bosque de Angicos. Eu comentei com ele que perto de onde eu estava acampado tinha chegado uma família que não era das minhas relações, e que eu mal tinha visto quantos eram. Em todo o caso o bosque era mui largo e tinha bastante gente esparramada por lá; quem sabe a comadre já tivesse chegado? Frederico também me pediu licença, saindo junto com a mulher e a filha, mas recomendando que eu não saísse dali porque ele voltaria sem demora.

E eu acabei ficando solito, mateando junto ao fogo de chão que ele mesmo tinha feito.
Acontece que o domador era considerado de casa na estância, voltando com a costela de um novilho, mui linda por sinal. E sem perder muito tempo acomodou a peça nos espetos, deixando-a ao lado do braseiro, de modo que fosse assando bem devagarzinho, que assar costela exige ciência e não se dá com gente afoita. Como modo de destravar a língua trouxe, também, um garrafão de vinho, que só de ver já fiquei meio tonto. O caso é que eu nunca fui de refugar parada nesses assuntos. Fiz uma reza sincera, para que um santo bondoso tivesse pena de um borracho como eu e me levasse em segurança de volta pros meus pelegos. E, depois, me entreguei à função. Durante muito tempo ficamos por ali, numa conversa animada e farta de risadas, já que o domador não perdia uma oportunidade de contar um de seus causos. E nesse troteado o sol foi se recolhendo, enquanto eu sentia que a minha vida seguia por um caminho de paz. Volta e meia o Marchador puxava a faca da bainha e cortava um naco de carne, só pra ver se já estava no ponto. E quando achou que era a hora, me disse, num sorriso:

_ Macia, quente e cheirosa, como perna de moça!
Se antes a coisa seguia muito a contento, entre causos e canecos de vinho, agora, com a carne no ponto, a noite, no meu ver de meio borracho, estava apenas começando. Há muito tempo eu não me sentia tão bem, como naquela noite; o que me fazia concluir que o fim de semana estava me saindo muito melhor do que eu esperava, me fazendo esquecer a solidão da Tapera. Talvez fosse mesmo hora de deixar aquela minha vida de umbu e procurar quem me quisesse por companhia.

Como que atraída pelo cheiro da carne, dona Arolda chegou de volta e sentou-se, outra vez, junto ao marido, aceitando, apressada, um pedaço de carne que ele lhe oferecia. Logo desatou a falar e a comer, ao mesmo tempo, enquanto dava notícias sobre os compadres que ela, finalmente, conseguiu encontrar no caminho que levava ao Bosque dos Angicos. Como a mulher tivesse voltado sem a filha, Frederico cumpriu seu papel de pai curioso e ciumento, perguntando logo pela guria. Eu me perguntava por que tanto cuidado, já que a guria andava bem perto de ser horrorosa. E, se por acaso aparecesse algum voluntário, com interesse nela, isso deveria ser motivo de festa. Ainda que, no fundo, eu sentisse pena do coitado. Dona Arolda tranquilizou o marido, contando, entre uma mordida e outra – na carne, não no marido -, que a filha deles estava passeando pela volta, acompanhada da filha da tal comadre. E arrematou dizendo que ele não se preocupasse. Segundo ela, as duas eram de muito juízo e bem criadas, e era normal que chamassem um pouco a atenção dos moços, já que formavam uma parelha de moças bonitas que dava gosto de se ver! De imediato me veio à cabeça o ditado que diz que “quem ama o feio, bonito lhe parece”. E não pude deixar de rir, imaginando que deveria ter sido assim que o primeiro teatino borracho acabou casando com uma mulher feia. Sendo a vida assim, sempre disposta a agarrar pelo pé um peão mais descuidado, bebi um gole grande, desejando às duas sucesso naquela empreitada de achar um bobalhão disposto a topar a parada.

Mas as coisas nem sempre saem do jeito que a gente espera. Aliás, que não sair conforme o esperado, no meu caso era regra. Eu já deveria esperar por isso. E, por consequência, quando elas voltaram, levei um susto de me fazer ficar grudado no cepo onde eu estava sentado. Não que a feiosinha do Marchador tivesse ficado bonitinha – vinho entorta as vistas, mas não faz milagre! -, o caso era que a moça que vinha com ela, Joana ou Joanita. que era como a chamavam, era como uma flor, da qual se ouve falar, mas nunca ninguém encontra. Bastou para mim que se trocasse o primeiro olhar para que tivesse uma certeza no meu interior: fosse na cidade ou na estância, fosse eu bolicheiro ou estancieiro, fosse qual fosse o meu destino, o certo é que seria ao lado daquela indiazita, de olhinhos miúdos e sorriso largo.

_ Oigatê pialo mais lindo, tchê! – disse, baixinho, o Marchador, quando percebeu que a presença dela tinha feito estrago em mim. Retribuí a observação com um olhar meio sem jeito, e voltei aos meus pensamentos, um tanto envergonhado.

Por algum tempo a vida começou a passar diante dos meus olhos. Decerto que embalada pelo vinho. E eu fui me deixando levar pela saudade de Juliana, como se aquela moça fosse ela que tivesse retornado. O que eu senti, quando vi Joana pela primeira vez, foi a mesma coisa que senti quando encontrei Juliana na beira da sanga. E eu tive certeza que o sentimento que nascia ali não seria diferente.

Nesse meio tempo, as duas gurias, em pé, voltavam suas atenções para a tertúlia, que ganhava corpo perto de nós. E eu percebi que Joanita já tinha virado o rosto duas vezes, na minha direção. Da primeira vez, mui séria, como se tentasse, assim como eu, adivinhar o que a vida nos reservava. Mas, na segunda vez em que procurou meus olhos, pareceu saber que tipo de angústia a sua presença vinha causando no meu peito de potro maneado. E sem medir as consequências do que fazia, abriu um sorriso franco e sem mistérios, como era do seu costume.

No entanto, apesar daquele sorriso e do vinho que me descia macio, meu coração não se aquietava e me fazia voltar o pensamento para alguns anos antes, onde alguma coisa me mantinha cativo; como se fosse preciso, primeiro, reviver aqueles dias, para poder me libertar daquela angústia que não me permitia sentir o que eu deveria estar sentindo.

Sem resistência, fui me deixando levar por recuerdos até os dias em que eu começava a pensar que aquele também era meu lugar. Não há como se negar que esse desejo de me incorporar àquela terra nasceu da descoberta de um novo mundo, pelas mãos de Juliana. E se meu reinar crioulo não fosse na Santa Helena, seria, com certeza, nalgum rincão como aquele; desde que a morena estivesse ao meu lado, sendo a senhora de mim. Naquele tempo eu ainda vivia influenciado pela minha criação, profundamente cristã. E não foram poucas as vezes em que pensei que as forças do bem e do mal tinham resolvido medir forças, usando a minha vida como instrumento de combate.

Depois de certo tempo passei a ver o mundo liberto da influência mística, abandonando a religião, sem perceber. E meus fantasmas de guri foram cedendo lugar a medos mais reais, de acordo com o modo de vida rude que passei a levar. Como consequência, deixei que minha vida se transformasse numa sucessão de dias e noites, em conformidade com a vontade da natureza, sem ficar procurando explicações para o que não se explicava por si. A marcação de tempo era imprecisa, naquela época. Mas entre a minha chegada na Santa Helena e aquela noite na Tarumãs teriam se passado entre seis e oito anos; “tempo demais”, pensava eu.

E se naquela noite a vida novamente apresentava uma oportunidade de viver com intensidade, despertei do sono longo e aceitei de peito aberto o desafio de me entregar de coração a alguém, que era esse o modo gaúcho; e para aquele viver de guapos eu já trazia a marca do João Vieira. “Amar exige coragem”, dizia ele.

Coberto de bons pensamentos, fui surpreendido, num repente, pela voz do Sabiá acompanhando o milonguear de uma guitarra campeira. E eu era capaz de apostar o meu poncho velho que um bom tanto de vinho tinha lá sua parte de culpa no abrir de goela do passarinho! Mas aqueles dias eram, a meu ver, dias de descobertas. E descobrir que cantar fosse, talvez, a verdadeira vocação do meu amigo, me trouxe uma mistura de alegria e alívio. E se fosse essa a vontade de Deus, tanto melhor, já que não me parecia o melhor dos destinos para o Sabiá viver encerrado por de trás de um balcão de bolicho. Pelo menos era isso que ele tentava dizer, quando se referia ao casamento como um viver embretado. Não que ele não tivesse bons sentimentos em relação à noiva, porque de certeza ele gostava da moça. O caso era que o Sabiá era cria de estância, guri acostumado ao pampa aberto; vento na cara, sobre o lombo de um crioulo reinão. Crescendo em galpão, junto ao fogo de chão, entre arreios com cheiro de cavalo, alimentado com bóia campeira e comendo churrasco gordo, já no café da manhã, acostumou de pequeno a pisar com os pés descalços os campos cobertos pela geada e a soltar a voz, cantando durante a lida, ainda de madrugada. Não era por menos que tinha por apelido o nome de passarinho. E passarinho, todo mundo sabe disso, só é feliz em liberdade.

Joanita se mostrava faceira, exibindo um sorriso largo a cada vez que, depois de cochichar com a amiga, me buscava com o olhar e me descobria preso aos olhos dela. Frederico Marchador animou-se com a cantoria, e, puxando a patroa pelo braço, entreverou-se em meio aos que antes dele tiveram a mesma idéia. E enquanto eu me tornava cada vez mais cativo, ele, já meio embalado pelo vinho, se largava em revolteios com a esposa, dançando como se já fosse o baile.

A cantoria seguia mui animada, com a gauchada disposta a dar mostras do que sabia, tanto em canto como em dança, de maneira que eu me contagiei com aquilo e, sem pensar no que fazia, levantei e me fui disposto a convidar a indiazita para uma dança. Séria, como tinha me olhado pela primeira vez, cravou os seus olhos miúdos nos meus, me fazendo tremer as pernas, para logo em seguida dizer que aceitava o convite. Mas, nem por isso voltou a sorrir. Para a nossa sorte, tinha muita gente dançando, de modo que nem o Marchador, por quem eu tinha passado, num valseado, nem o Sabiá, que me olhou de olhos mui acesos, perceberam como nós trememos de nervosos, ao ficar daquele jeito tão próximos.

No dia seguinte passamos quase que o tempo todo em redor do nosso fogão de acampamento, descansando para o baile. O que era para ter sido apenas uma tertúlia crioula transformou-se num baile de caramanchão, que durou até muito tarde. A família Marchador retirou-se um pouco antes do esperado, em virtude do velho Frederico ter passado da conta no vinho, o que fez com que ele já nem dançasse, mas dormisse, de trocar as pernas, com a cabeça no ombro da esposa. Me despedi de Joanita, sem dizer uma palavra. Eu até que quis, mas não consegui pensar em nada. Enquanto que ela despediu-se de mim com um “muito obrigada”, terminado num sorriso que me fez falsear as patas.

Depois disso, eu não quis saber de mais nada. Voltei para o lugar de onde tinha saído e me entreguei, cheio de alegria, à tarefa de terminar com o vinho, rezando para que o Sabiá bebesse menos do que eu e se lembrasse de me carregar pra casa. No final da festa tínhamos bebido a mesma coisa. Mas animados como ficamos – cada qual com suas razões -, acabamos nos encontrando. E terminamos a borracheira, já de volta ao nosso lugar de pouso, dormindo meio que a campo, já que nenhum dos dois conseguiu arrumar os pelegos, de modo que servissem de cama.

Pelo meio da tarde, logo em seguida da sesta, um desconhecido veio ao nosso encontro, procurando pelo capataz da Tapera. De pronto o Sabiá reconheceu o gaúcho como sendo o domador índio, que anos antes tinha estanciado na Tapera, por um longo tempo, cuidando do ofício de amansar potros e lidar com bagual aporreado. Eu estava entretido, cuidando de uns arreios, um pouco mais afastado, que era para poder esticar umas cordas, de modo que, quando cheguei perto para dar fé do que se tratava, atendendo ao chamado do Passarinho, foi grande o susto. Pois não vê que o tal Índio Guarany era o mesmo xiru desarranjado, com quem eu tinha trocado um mangaço na orelha, naquele episódio do desvario de tripas! Cheguei a pensar que a coisa fosse ficar esquisita, pois que nenhum de nós tinha se conformado com aquele esquentar de orelhas; e que, afinal, não era daquele jeito que se dava as “buenas”. Mas aprendi, depressa, que aquele homem era de outra raça de gaúchos. O Sabiá tratou das apresentações, meio sem entender o porquê daqueles olhares tão sérios; o que, aliás, não durou muito, porque o índio logo se abriu num sorriso largo, dizendo:

_ Mas só podia, mesmo, ser cria do Juan Peleador! Era assim que ele chamava o João Vieira.
Nem é preciso dizer que não se tocou mais naquele assunto. Mas nem por isso deixamos de rir, com vontade, quando tempos depois, tomando canha, de mano, um dos dois lembrava o sucedido. Como a prosa era agradável encostei mais uns gravetos junto ao fogo, na intenção de fazer um mate novo, e envidei o Guarany à amarguear um pouco conosco. Manda a boa educação campeira que não se recuse convite pra um mate, a não ser que se tenha motivo mui sério. E era fosse um gauchão de boa cepa, acomodou-se feliz o domador. A conversa, como era de se esperar, enveredou para a vida campeira. Em especial a lida com matungos, que era mesmo a paixão do homem. E só de ouvir o que ele contava, já deu para aprender outro tanto. Depois, ele puxou conversa sobre o João Vieira e a vida na Tapera, lamentando não ter ficado junto de nós quando soube, por um conhecido, das mudanças que se fazia por lá.

_ Mala suerte, companheiros! Cheguei tarde para a festa, hein? – disse ele.
_ Que nada, seu Guarany. O senhor sabe que o capataz não é homem de esquecer de ninguém. O tanto que lhe cabe, tá guardado e lhe esperando. Tem um lote de baguais, de tudo quanto é idade e pelo; bicho que corre brabo, só de olhar pra o freio! – respondeu o Sabiá, fazendo o homem abrir um sorriso.

Com o correr da conversa, o assunto acabou enveredando para o baile, que se avizinhava; o que fez o domador lastimar o fato de a esposa ter torcido o tornozelo, na noite anterior, quando se preparavam para ir à tertúlia. Até porque tinham vindo mais para atender a um pedido da filha, que queria acompanhar uma amiga, filha de um compadre seu ao baile. E ele queria aproveitar a oportunidade para rever velhos amigos; e era uma pena o João Vieira não andar por lá. Mas o domador não se deixava abater por isso, pois tinha intenção de sentar as garras na bagualada da Tapera, no máximo, em dez dias. E nos mandava avisar ao capataz que era pra reservar um lote de borregos gordos. Conforme o que dizia o domador, fazendo graça com o João Vieira, três coisas tinham em abundância na Estância da Tapera: gado chimarrão, cavalo aporreado e sorro.

O tempo passou depressa. E quando nos demos conta, as sombras do bosque já tomavam jeito de anoitecer.
_ Bueno, senhores, acho que já deve ser hora de se arrumar pro baile – comentou o Guarany. _ E eu tenho que assumir minhas lidas de casa, já que a mulher é o mesmo que uma coatiara; se me demoro mais, acabo me complicando. E não ia ficar bem levar uma tunda, na frente dos amigos – completou, num sorriso largo.

Antes de sair ainda nos convidou para uma passada no acampamento deles, para experimentar um vinho com ervas que, segundo nos garantiu, era uma receita ancestral de fazer estrago no corpo e no coração de xirua que topasse namoro escondido. Segundo ele, aquilo era chá de bagual novo; coisa de fazer o sangue do quera ferver nas veias, só faltando relinchar. – Ai daquele que não tiver tino! – repetia ele.

Arreios de prata, bem polidos, tentos trança de quatro, seis, ou oito, conforme a peça; cavalos de cola atada e bem trançada, pelo lustroso, de refletir lua e estrela. Um palinha de tecido leve, que se usava mais por exibimento do que por necessidade, e lenço da cor da preferência. Assim, bem montados e pilchados com capricho, saímos ao encontro dos nossos destinos, cada um com as suas intenções. As do Sabiá eram abrir o peito na cantoria, que para isso já tinha recebido convite. E das minhas, não fiz segredo ao meu amigo; nem que quisesse teria podido esconder dele o meu desejo de reencontrar Joanita.

Na noite anterior, mal chegamos a trocar umas palavras, só olhares cheios de coisas boas; e ouvir daquela voz, só quando se despedia, não me bastava. O que eu queria, mesmo, era ter de novo minha prendinha contra o peito, gastar o taco da bota num chamamé correntino ou, mesmo, num xote largado; e depois trocar um monte de palavras com ela, tomando ar debaixo do caramanchão.

Antes, atendendo ao convite feito, achamos que seria sinal de respeito e consideração dar uma passada rápida pelo acampamento do índio Guarany e perguntar se precisavam de alguma ajuda. Além de, é claro, tomar um trago do tal vinho, desejando saúde ao nosso novo amigo. Fiquei surpreso com a alegria sincera demonstrada por ele, quando nos viu chegando. E a julgar pelo falar diferente, ficou claro que ele já ia adiantado na função de beber vinho de índio. Apeamos, dada a insistência dele, e tomamos lugar junto ao fogo de chão, onde uma paleta de capincho assava, lentamente, já que essa é uma outra qualidade de assado que não combina com gente apressada. E por ali nos quedamos, de água na boca. O Guarany nos pediu licença e seguiu em direção à tenda, que naqueles dias era a casa dele, dizendo que precisava dar uma espionada na mulher e buscar um guardado, conforme ele tinha prometido. Aliás, que viviam em acampamentos como aquele praticamente o ano todo, porque o modo de vida que levavam assim o exigia.

Juan Guarany era dono de um tanto de campo, até considerável para um homem que vivia de estância em estância. Mas sempre viveu pelos campos acompanhado da mulher e dos filhos: quatro homens e uma mulher. E deles, a única que ainda vivia com os pais era a guria. Dos filhos machos, um tinha morrido num lusco-fusco de bochincho, que conforme o que diziam nem tinha nada a ver com ele. Mas a confusão tinha sido grande; e o infeliz acabou levando uma facada de mau jeito por entre as costelas. Dois dos outros filhos tinham casado; e levavam a vida igual à do pai, domando potros e redomões pelos rincões, que para isso tiveram o melhor dos professores. Um pras bandas de Uruguaiana e outro em terras paraguaias, onde acabou casando com uma prima, por quem tinha se enrabichado. O mais novo dos guris era o que tomava conta das terras da família; uma estanciola de bom tamanho, conforme eu disse, onde o forte era a doma de cavalos – o que não poderia ser diferente -, sina da qual, pelo jeito, nem a filha escaparia. Eu até já imaginava a coitada com cara de égua.

Seguindo com o causo, saiu de volta da tenda o domador trazendo uma botija de vinho; resmungando alto, em língua de índio, visivelmente contrariado com alguma coisa que a mulher lhe teria dito, e meio que sem jeito veio se explicando:

_ Acho que arrumaram um problema… – disse ele, enquanto se servia de uma caneca de vinho. Depois de um primeiro gole, seguiu com o causo.
_ Eu tenho amizade com o Juan Peleador, desde os tempos da guerra. A gente se conheceu numa tropeada, contrabandeando potros para um coronel colorado, que tinha campos no Uruguai e nos mandou buscar os bichos. Desde aquele dia pra cá sempre fomos hermanos; de modo que o que vou lhes pedir, peço em nome dessa minha amizade com ele… Terminando de falar, entornou, goela adentro, o que restava no copo.

Como nenhum dos dois sabia, ao certo, do que se tratava, concordamos com o pedido com um balanço de cabeça, esperando que ele esclarecesse as coisas. Vá lá que não se deve concordar em fazer o que a gente nem sabe o que seja. Mas, em todo caso, sempre se podia mandar a conta para o João Vieira, já que era em nome dele que se falava.

_ …Bueno! – continuou ele, depois de encher o caneco e passar para o Sabiá – o caso foi que minha mulher combinou com uma comadre dela de se encontrarem para levar as gurias ao baile; que os senhores sabem que uma moça de família direita não pode ir sem quem olhe por ela. Mas acontece que minha mulher não melhorou nem com meu preparado, capaz de curar até desmentido de pata de égua. E pra piorar a coitada agora anda com febre; e eu não posso deixar o acampamento. O que eu quero pedir é que vocês levem minha guria e cuidem dela até que ela se encontre com a madrinha. Depois, podem deixar por conta, que a comadre olha por elas.

_ Mas que cousa, seu Juan! E precisa todo esse arrodeio, só pra falar uma coisa dessas? – respondeu o Sabiá. Pode confiar, descansado, que a gente não larga a moça sua filha até que ela encontre a madrinha, isso eu juro pela vida de minha santa mãezinha! – completou o Passarinho, fazendo o sinal da cruz. E eu acompanhei o gesto, jurando, também, pela minha mãezinha, fosse ela santa ou não, que isso eu não podia afirmar, já que não a tinha conhecido. Em seguida, o Sabiá entornou, goela abaixo, meia caneca daquela beberagem que o índio Guarany tinha preparado. E, depois de lamber os beiços, satisfeito, me passou a caneca.

Nesse meio tempo o domador deu um grito, na direção da tenda; decerto que chamando pela filha, pra modo de avisar que já tinha quem cuidasse dela, até que ela encontrasse a madrinha. Já que eles só conversavam entre si em língua de índio, eu fiquei parado, de caneca na mão, esperando para ver a cara da encrenca que a gente tinha arrumado. Pois não vê que quando eu ia beber o meu primeiro gole ela resolveu sair da tenda; e tamanho foi o meu susto que fiquei ali, feito vaca atolada, segurando a caneca, parada perto da boca aberta, sentindo o coração se desdomando na caixa!

Joanita, quando me viu, ficou tão surpresa quanto eu. Voltando pra dentro da tenda, no mesmo pé em que tinha saído, tagarelou, apressada, naquele linguajar estranho. Logo se ouviu a voz daquela que só podia ser a mulher do Guarany. E não demorou para que ele próprio seguisse na direção da tenda.

_ Mas, tchê, Graxaim, que gente mais estranha! Quanto mais eles falam, menos eu entendo! Oo que é que se passa, afinal?
_ É ela, Passarinho, a guria de quem eu te falei ontem! La pucha, tchê, ela é a filha do domador!

_ Mas, companheiro, pensando bem, o que é que tem de ruim nisso? – perguntou o Sabiá. _ Tu não te dá conta que daqui a poucos dias eles vão estanciar nos campos da Tapera! E não é, por acaso, o índio mui amigo do capataz, conforme ele mesmo disse! Então, tchê? Sossega que anda tudo a favor. E se a coisa se deu como tu me contou, não demora sai casório! – animou-se ele.

Pouco depois o Guarany voltou, trazendo a filha pelo braço – linda a não mais poder -, e me olhando nos olhos, mui sério, me disse:
_ Vou te confiar minha filha, para que tu sejas o acompanhante dela durante o baile. Pra isso te dou a minha permissão. Mas, antes que tu me perguntes qualquer coisa, vou te adiantando que nosotros somos de outra raça, e temos nossos usos e costumes. Mas isso depois se explica, porque é certo que nós vamos sentar pra conversar. E no que depender de mim, vai ser amanhã mesmo… Nunca confiei que nada que prestasse poderia vingar na Tapera. Em todo caso vou confiar no teu respeito, em nome do Juan Vieira, que fica sendo teu fiador.

Eu tinha me posto de pé, pronto pra qualquer coisa, pois ao contrário do Sabiá, que via na coincidência uma boa oportunidade, eu, como sempre, desconfiava da sorte, que quase nunca me amadrinhava; e esperava que viesse de lá chumbo do grosso. Olhando nos olhos dele, e sem saber direito o que fazer, resolvi tomar um trago da bebida, que estava esquecida na caneca em minha mão. Mas ele, sem ser rude, segurou meu braço, dizendo-me:

_ Mesmo confiando em ti, eu digo ao amigo que é melhor que não bebas dessa bebida. Se quiserem um trago de vinho, antes de sair, lhes trago de um outro, que esse não é de minha confiança! – disse ele.

De saída, eu não entendi o que ele queria dizer. Mas, em seguida, lembrei-me de que ainda cedo, quando estava de visita no nosso acampamento, ele tinha falado do tal vinho, que era de fazer o sangue ferver nas veias… Agradeci o convite, dizendo que ficava para o dia seguinte; e, assim, nos despedimos. Eu não quis dizer a ele que me bastava o sorriso da indiazita, para que eu ficasse logo embriagado. (continua…)

Autor: André Moab Garcia
E-mail: andremoabgarcia
Blog Bombacha Larga

2 Comentários

  1. Jonathan said,

    julho 10, 2012 às 5:33 pm

    A versão impressa está disponível no site “clubedeautores”, link: http://clubedeautores.com.br/book/131735–O_Rincao_dos_Esquecidos
    livros na modalidade “sob demanda” costumam ser um pouco mais caros, mas eu queria dar de presente a uma amiga e foi o único meio que encontrei. Valeu a pena!

  2. Júlio Gonçalves said,

    março 21, 2020 às 11:13 pm

    Olá, qual o e-mail completo do autor??


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